sexta-feira, outubro 01, 2004

Cabelos molhados... (insutentável delicadeza do desejo)

Estás longe. Cabelos molhados resistem ao vento. Hoje não te vejo. Esta noite vou escrever-te... só para mim. Vou abrir-te uma página onde te possas deitar com o queixo apoiado nas mãos e ver-me escrever, sorrir para mim. Cabelos molhados resistem ao vento. Enches-me as mãos de te não ver. Ardes. Combustão lenta em mim. És uma vela que se não derrete; não te consomes. Projectas os olhos na parede com a tua luz, fazendo voar sombras de um coração que está longe.

Sei onde estás. Dormes. Profundamente. Tens o cabelo espalhado em leque pela tua almofada. Respiras para a noite, não fechas a porta do quarto. Preferes deixá-la entreaberta. Cabelos molhados resistem ao vento. Agora dormes. Tão doce. Um anjo. Atravessas-me de manhã com os beijos feitos da luz que guardaste durante a noite. Está calor, hoje que não me sei sem pensar em ti.

Calma. O ar cansado. Tudo fica onde está, estático, nem o vento parece ter vontade de soprar. Sorvo o sopro de luz que hoje não tive de ti. À luz do dia. Longe, doce no rumor da noite. Saudades do teu acordar. Saudade do vórtice de ar que deixas atrás de ti e que te levanta no espaço os caracóis esvoaçantes. Cabelos molhados resistem ao vento. Não tive tempo de te querer, ainda. Estás ainda nos meus lábios. Segues-me, sentada neles. És luz. Ar... e água. Em mim. A minha tabela periódica dos elementos e das marés; a clave de Sol das minhas sinfonias compostas em Allegro e Presto. Cabelos molhados resistem ao vento.

És. De noite, de dia. És. Acordas-me, devagar, no rumor dos meus sonhos. Cabelos molhados resistem ao vento. Visto-te, e trago-te comigo. Olho-te, através da janela... és a primeira luz fria da manhã, tens um espelho nos teus olhos e na cor do teu cabelo. Desenho-te e pinto-te com palavras, que no entanto não me chegam para te acabar...faltam aquelas que não tenho ouvido de ti, ou tenho ouvido pouco. És. Já são frias as noites por aqui. Cabelos molhados resistem ao vento. Um dia. Depois outro, e outro... espero por ti. De noite. Um sinal de ti, para mim. Doce. Intermitente. Como um farol.

Hoje, há versos espontâneos na tua voz, há melodias perfumadas nos teus gestos. Eu sei. Eu sei. Horas. Amplas. Ao longe, recua a maré para dar lugar a uma onda maior que as outras. Rebentou. Hoje, as tuas mãos sorriem, rítmicas e oscilantes, às estrelas; há aroma de anjo no teu andar. Não te afastes da Primavera. Nem de mim.

Silêncio. Flutuante sobre a água. Ondas dispersas. O mar. Hoje a noite está quieta. E cabelos molhados resistem ao vento... resistem ao vento. Espero pelo teu gesto no olhar doloroso da Lua.

A insustentável delicadeza do desejo nasce do beijo com que o mar desprende as areias...

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