domingo, setembro 26, 2004

Trifásico

I

Ali. No canto... uma sombra tua deixou-me cair um sorriso, que me chegou embrulhado num pedaço branco de papel já gasto, já cansado de viajar transportando sorrisos. Olhei para ele. Esperei que pairasse à minha frente, suspenso, leve no ar quente da manhã. Apanhei-o, guardei-o bem junto a mim. Hoje ainda o tenho. Mãos que se olham, sempre, querendo entrelaçar-se todos os minutos. À noite. Calor. Hoje. No ar, a lentidão tépida que nos envolve em quentes abraços, a calma clara de luz que invade as paredes brancas dos quartos e os telhados dos prédios em redor. Uma manta no chão. Silêncio. Tu. Doce, à luz do ar. Beijo-te... Sei-te, de olhos fechados, sem mapas nem GPS nem outros sistemas de navegação. O único meio de que me sirvo são os teus caracóis escuros, ondeantes, abertos sobre um par de almofadas, no chão. Por eles caminho com os dedos, afastando-os para chegar a lábios que tanto quero beijar; por eles sei onde estás. Longe, ou perto... Com eles vou desvendando o silêncio que existe de manhã ao acordar. Páginas soltas, saudade nas linhas do papel onde escrevo.

II

À noite dormes. Tão longe... e distante. Fora de mim, de ti, de tudo o que está e que nos envolve. Completamente. Fecho portas entreabertas. Fecho aspas, chavetas, parêntesis curvos e rectos. Estamos sozinhos. Qual era o segredo? Dormes. Profundamente. Nem o vento que passa pelos teus caracóis abertos para a noite te faz estremecer, sequer um pequeno movimento de olhos. Dormes. Hoje não estás. Dormes. Eu sei, eu sei... tão doce, tão leve, suspiras para o ar a respiração que hoje conheço tão bem. Sigo-te. Para onde fores. E quando não puder ir, roubo-te um bocadinho do teu coração, levo-o comigo e guardo-o ao lado do meu... À noite dormes. Tão longe... e distante. Sei-te. Quando dormes perco-te. Não te sei. Tão longe... e distante. Bateu-me à porta o sono. Agora. Fecho os olhos. Vou dormir... agora. Até já.

III

Tu. Suspensa no vento quente de um fim de tarde. Tu. Adoro os sorrisos que usas. Sempre. E os olhos que vais acendendo, para eu te ver, ao longe, cheios da luz e da cor que tenho na palma da minha mão; trazidos no movimento claro de duas madeixas de ondas escuras que acabam de rebentar, desfeitas em espuma... Adoro os sorrisos que usas. Sempre.Abro a minha janela para o ar leve da noite. Espero ver-te passar, voando, perto daqui, só para te dizer que te quero. Muito. Mesmo que não consigas ouvir. Já o sabes. Sempre. Espero. Gosto de estar à janela em noites quentes. Sentir o calor de um dia subir em direcção à Lua. Abraçá-la para que não tenha frio, lá do alto, longe, onde só chegamos com os nossos olhares. Tu. Suspensa no vento quente de um fim de tarde. O teu cabelo ao Sol. Quero largar a caneta e correr à janela, espreitar para ver se estás... Quero ver-te à luz da noite.

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